Numa operação
desproporcional, quase uma centena de policiais despejou nove famílias Guarani
Kaiowa do tekoha Apyka'i, na manhã desta quarta, 6, no município de Dourados
(MS).
Os pertences dos indígenas foram retirados e colocados em caminhões, e
todos os barracos foram destruídos com um trator do tipo pá carregadeira.
O
proprietário da fazenda, Cassio Guilherme Bonilha Tecchio, estava no local, e
garantiu a servidores públicos que não violaria os túmulos dos nove indígenas
enterrados no local. A área é arrendada para o plantio de cana da Usina São
Fernando, propriedade de José Carlos Bumlai, preso em 2015 na Operação Lava
Jato.
A operação teve
início às 6 da manhã e foi realizada pela Polícia Federal, Polícia Rodoviária
Federal e Polícia Militar, em cumprimento à decisão judicial de reintegração de
posse da área, assinada pelo juiz substituto Fábio Kaiut Nunes, da 1a. Vara da
Justiça Federal de Dourados. A Fundação Nacional do Índio (Funai) foi informada
do despejo apenas quando as forças policiais haviam iniciado o procedimento.
A reintegração foi
realizada mesmo com pedido da Funai de suspensão de liminar no Supremo Tribunal
Federal (STF), ainda não julgado - o STF aguardava a manifestação do Ministério
Público Federal (MPF) no processo para decidir sobre o pedido. Também, o
despejo ocorre uma semana após a publicação de uma portaria da Funai, na última
semana, estabelecendo o Grupo de Trabalho (GT) responsável pela demarcação de
Apyka'i.
Os caminhões
levariam os pertences dos indígenas a qualquer lugar que eles quisessem. O
lugar escolhido foi a beira da estrada em frente ao tekoha, onde por mais de
uma década viveram os Kaiowa e, agora, debaixo de chuva forte, a 10 graus de
temperatura, os indígenas voltam a erguer novos barracos.
Prevaricação
Esta não é a
primeira vez que o juiz substituto em estágio probatório da 1a. Vara da Justiça
Federal de Dourados decide pela reintegração de posse contra os Kaiowa de
Apyka'i, apesar da forte oposição dos indígenas e de diversas organizações de
direitos humanos do mundo todo contra o despejo.
Na última decisão,
em maio, Kaiut requisitou ao governo do Mato Grosso do Sul o uso da PM para o
cumprir a reintegração, mas o pedido foi negado. Em sua decisão, Kaiut exigiu
que a Procuradoria Geral da República "adote as medidas cabíveis"
contra o governo do estado pelo não-cumprimento. Tanbém solicitou ao Ministro
da Justiça o uso da Força Nacional de Segurança (FNS), que respondeu ao
magistrado não estar entre suas atribuições o despejo dos indígenas.
Dessa forma, no
dia 14 de junho, uma nova decisão de Kaiut determinou novamente a reintegração
de posse, "no prazo improrrogável de 15 dias, sob pena de apuração da
prática de crime de prevaricação por parte dos agentes públicos federais"-
ou seja, caso não cumprissem a ordem, os policiais responderiam a ação penal.
Em carta assinada
por mais de 700 indígenas, o Conselho do Aty Guasu - Grande Assembleia -
Guarani e Kaiowa denunciou "a perseguição que sofremos do juiz Fabio Kaiut
Nunes (...) tem realizado uma verdadeira cruzada contra nosso povo, inclusive
tem forçado a policia a cumprir ordem de despejo (...) mesmo quando a policia
entende a ação como excessiva e não quer cumprir", e sugere que o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) "estudem as decisões deste juiz e veja sua
prática contra nosso povo".
O mesmo juiz negou
pedido de indenização por danos morais coletivos contra Aurelino Arce,
proprietário da empresa de segurança privada Gaspem, acusada de atos de
violência contra grupos indígenas no Mato Grosso do Sul, determinando o
arquivamento da ação e o pagamento de honorários advocatícios pelo MPF, no
valor de R$ 3 mil, exigência considerada inédita.
O tekoha
Por mais de uma
década, as nove famílias do Apyka'i viveram na beira da estrada, sofrendo
ataques de seguranças privados, tendo seus barracos criminosamente incendiados
a mando de produtores rurais, bebendo da água mais podre dos córregos
envenenados pela monocultura - figurando, assim, como uma espécie de
"comunidade modelo" do genocídio que sofrem os povos indígenas no
Brasil.
Desde 2013, os
indígenas retomaram parte do território reivindicado como tradicional, onde
incide a fazenda Serrana, propriedade de Cassio Guilherme Bonilla, arrendada
para a gigante do setor sucroalcooleiro Usina São Fernando.
Nove pessoas
faleceram no local - oito, vítimas de atropelamentos, e uma envenenada por
agrotóxicos utilizados nas plantações que circundam a retomada. Os moradores do
tekoha sobrevivem essencialmente de doações e de cestas básicas oferecidas por
apoiadores e pela Funai. Não tem acesso à água, à floresta, è educação, saúde,
à segurança ou a dignidade mínima.
A usina
Instalada em
Dourados em 2009, a Usina São Fernando é um empreendimento do Grupo Bertin, um
dos maiores frigoríficos produtores e exportadores de itens de origem animal
das Américas, e da Agropecuária JB, ligada ao Grupo Bumlai, especializado em
melhoramento genético de gado de corte. Um dos territórios utilizados pela
usina para produzir cana é reivindicado pelo Kaiowá do Apyka’i.
Em 2010, sob
perigo de perder sua licença de operação em função de diversos descumprimentos
legais em questões trabalhalistas, ambientais e indígenas, a usina teve de
assinar um termo de cooperação e compromisso de responsabilidades na Justiça.
Entre as condicionantes
estabelecidas pelo Ministério Público Estadual, Ministério Público do Trabalho
e MPF, a usina era obrigada a não renovar o contrato de arrendamento da fazenda
Serrana, de Cássio Guilherme Bonilha Tecchio, propriedade que incide sobre o
território reivindicado como Apyka’i pela família de Damiana, quando o atual
findasse.
Em 2015, José
Carlos Bumlai foi preso no decurso da Operação Lava Jato, acusado de fazer
parte de um esquema de corrupção e fraude no pagamento de dívidas de campanha
eleitoral do Partido dos Trabalhadores.
Fonte: Conselho Indigenista Missionário (CIMI)